
Não foi apenas uma ministra silenciada. Foi uma mulher. Uma mãe. Uma avó. Uma evangélica. Uma senhora de sessenta e seis anos que sobreviveu à miséria, à malária, à hepatite, à contaminação por mercúrio. Não foi só a ministra do Meio Ambiente quem foi enxotada de uma comissão do Senado: foi a cidadã Marina Silva, a única que naquela sala trazia nas costas a floresta, a Bíblia, a infância colhida no seringal e os filhos criados na escassez com o mesmo cuidado com que hoje cultiva políticas públicas.
Na terça-feira, o que se viu em Brasília não foi um embate técnico. Foi uma tentativa grotesca, rude, brutal, de rebaixar uma mulher porque ela ousa falar alto sem gritar. Porque ela ousa ter razão. Porque ela, sendo mulher, negra, do Norte, ex-doméstica, alfabetizada aos 16 anos e formada aos 26, teve a ousadia de não se calar.
Mandaram que ela se “pusesse no seu lugar”. Pois foi exatamente isso que ela fez: colocou-se no lugar que lhe pertence — o da lucidez, da coragem, da dignidade. E ali ficou, enquanto os homens, travestidos de senadores, se enrolavam no fio da própria grosseria, desvelando o pavor atávico de enfrentar uma mulher que pensa com clareza e fala com doçura.
Esses homens, que batem no peito e batem na mesa, tremem diante de quem não bate em nada, mas tem a floresta inteira no peito.
Marina não responde com insulto. Responde com o tempo. E o tempo, quando julga, é implacável.
Quando um senador diz que respeita a mulher, mas não a ministra, não está dizendo que não respeita a função: está dizendo que não a que uma mulher tenha voz. Quando outro diz que ela está “atrapalhando o Brasil com essa conversa de governança, nhén-nhén-nhén”, está apenas confessando a própria mediocridade, com a deselegância de quem nunca teve que provar nada na vida, enquanto Marina teve que provar tudo — inclusive sua humanidade.
É preciso ter memória: Marina foi seringueira antes de ser ministra. Foi empregada doméstica antes de ser senadora. Foi católica antes de ser evangélica. Foi analfabeta antes de se tornar uma das mulheres mais premiadas e respeitadas do planeta. Se há alguém neste país que honra a república, essa pessoa é Marina Silva. E por isso ela incomoda tanto. Porque sua integridade não é negociável. E porque ela não pertence a nenhum clube dos velhos donos do poder.
É por isso que querem dobrá-la. Porque sabem que não podem comprá-la.
Marina tem o corpo marcado pela doença, pelos agrotóxicos que intoxicaram seu sangue, pelas madrugadas em que parava para estudar depois de limpar casas de outros. Mas carrega, junto disso, uma fé inabalável em Deus — não um deus que castiga, mas um Deus que regenera. Marina não odeia. Marina perdoa. E talvez isso a torne ainda mais inável para quem não consegue enxergar força fora da violência.
Naquela sessão, interrompida, humilhada, acusada de “atrapalhar o desenvolvimento”, Marina não perdeu a linha. Perdeu a paciência, sim, e com razão. Mas não perdeu a compostura. Porque sabe que não fala só por si. Fala por milhares de mulheres que são diariamente silenciadas nos plenários, nos lares, nas igrejas, nas ruas, nos escritórios, nas universidades. Fala pelas meninas que ainda serão interrompidas. Pelas que não têm microfone para dizer: “Eu não sou submissa.”
Se existe alguma esperança de ética pública neste país, ela a por figuras como Marina Silva. E é preciso dizê-lo com todas as letras: não é possível mais aceitar que mulheres sejam tratadas como alvos em sessões parlamentares. Que sejam ofendidas com cinismo, que tenham sua voz apagada, sua biografia atacada, sua presença tratada como inconveniente.
O Senado deve desculpas formais a Marina. Mas o Brasil deve mais: deve proteção, reverência, escuta. Deve itir que falhou com ela muitas vezes. Que a subestimou. Que a ignorou. Que a criticou por não berrar, por não ser “carismática”, por não ceder. E que agora, talvez tarde, entenda que é ela quem ainda pode nos ensinar como habitar este país em ruínas com alguma decência..
E um dia, quando os nomes dos que a insultaram forem apenas notas de rodapé, o nome dela ainda será pronunciado com respeito em muitas línguas. Porque Marina não é de um partido. Marina é patrimônio moral da República.