Tenho por costume, em meu aniversário, folhear um álbum de recordação que ganhei ao completar 10 anos. Contém nomes, poemas, pequenos textos de quem ou ou se encontra em minha vida.
De 1997, guardei nele a carta de um querido meu, contemporâneo do papai, Maestro Antônio Munhoz, que por décadas regeu uma orquestra em Paris. Na referida correspondência, disse-me sobre música, riachos, flores, árvores, silêncio, solidão, vermelhidão dos arrebois da madrugada, o cintilar deslumbrante das estrelas e até da morte, que compreendia como um fechar os olhos, sentir a escuridão, abri-los de novo e ver a Luz. Dele também um texto de Fra Giovanni (1433-1515), humanista, arquiteto e engenheiro italiano: “A vida é tão significativa, cheia de propósitos e belezas sob a cobertura aparente das coisas materiais! Reivindicai isso para vós. Não vos será difícil já que tendes coragem e o conhecimento de que somos peregrinos, que nos dirigimos através de um país desconhecido para nossa real morada”.
Com 71 anos, em vários lugares desta cidade, onde cresci, há um porto do adeus em águas mansas que atravessaram o horizonte. Não me vejo mais em comemorações eufóricas. O clamor de outrora, no dia de meu aniversário, deu lugar a uma planície de alfazema azul-violeta. Encanto-me com o tom de melancolia em versos sem perder o encanto por Deus ter me dado a vida.
Neste ano, em dois de maio, li o artigo “A Casa da Francisco” de José Alves Jana, doutorado em filosofia e professor, de Abrantes - Portugal. É desses amigos raros, que conheci via internet e permanece.
Comenta sobre o Papa que, como qualquer criança, era sobretudo moldável pela casa que lhe iria dar forma. Primeiro, sua família biológica, depois a família dos Jesuítas. Em seguida a Arquidiocese de Buenos Aires e por fim o colégio dos cardeais. Escreve Jana: “É fácil, e justo, olhar Francisco naquilo que ele foi como Papa. Mas é importante prestar atenção a tudo aquilo que lhe deu a forma, que lhe permitiu ser o que foi. Houve, como em cada um de nós, um dinamismo interior, próprio de qualquer ser vivo humano”. Destaca o cristianismo como casa de formação humana e acrescenta que se “tudo nasce para florir”, como diz Francisco, mas algumas vidas murcham demasiado cedo e muitas se tornam frutos amargos.
Fez-me refletir sobre o que me deu forma e me levou, neste ciclo de idosa, a contemplar as planícies com alfazemas, das quais aceno com saudade para os que se foram, e me faz viver o dia a dia com desejo de Eternidade. Cortaram-me o cordão umbilical, sem que rompesse o que me liga ao Senhor.
Hoje, a casa que me acrescenta é a Igreja onde professo minha fé e me dá sentido à cruz e à ressurreição. A Igreja que me alenta no sofrimento, conforme diz o Padre Marcio Felipe: “A cruz faz parte de nossa vida, mas no caminho encontramos pessoas que amenizam a nossa dor, como Verônica ao enxugar o rosto de Jesus”. A Igreja que me acarinha com Dom Arnaldo, Dom Vicente, Dom Gil, Padre Márcio Felipe, Padre Milton, as Monjas do Carmelo...
Benditas as vivências que me deram forma com olhos no Céu e que Deus me dê a graça, até o último dos meus dias, de me dedicar para que vidas não murchem ou se tornem amargas.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista ([email protected])