OPINIÃO

A linguagem das sombras

Por Roberto Magalhães | O autor é professor de redação e autor de obras didáticas e ficcionais
| Tempo de leitura: 2 min

Temos a mania da transparência. Tudo bem explicadinho, tintim por tintim, o preto no branco, a firma reconhecida, a prova dos nove. Queremos o salão iluminado, se possível nenhuma sombra. Que pena... Há beleza também no nublado, no que só se deixa entrever sob véus, no que é apenas sugestão. Não é outro o conselho de Clarice Lispector: "Já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas." Sim, fora das linhas, enfiadas nos seus vazios, as palavras dizem mais.

Nenhuma dúvida de que a linguagem da comunicação deve ser clara e objetiva. É preciso evitar toda possibilidade de mau entendimento entre a boca e os ouvidos. Mas existe uma linguagem diferente que se constrói nas sombras, explorando vazios, evocando ambiguidades, mais sugerindo do que dizendo. Assim é a linguagem das artes que, por ser metafórica, é criativa e polissêmica.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, professor da Universidade de Artes de Berlim, em "A Sociedade da Transparência", diz coisa nublada: "A transparência não permite o jogo. Elimina o segredo, a sedução, o erotismo, o enigma." Bem isso, luz em excesso cega. No jogo amoroso, por exemplo, luz demais despoetiza os corpos dos amantes. Haverá de lhes ser leve, indireta, difusa, sutil. É nesse jogo de mostrar menos e esconder mais que reside a linguagem erótica. O escancarado é pornográfico. Há beleza na sutileza dos versos drummondianos: "Sob o chuveiro amar, sabão e beijos, ou na banheira amar, de água vestidos, amor escorregante, foge, prende-se, torna a fugir, água nos olhos, bocas, dança, navegação, mergulho, chuva, essa espuma nos ventres, a brancura triangular do sexo."

Assim, a linguagem estética recusa o já dito, os clichês, o que é luz demais. Picasso nos deixou uma fresta: "A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade." O gênio espanhol recusou o iluminado, o repetido, a lógica opressora do figurativo. Com traços geométricos, cubistas, expressou a sua onírica genialidade. A arte reage à vida iluminada e lógica que o senso comum impõe.

Sim, precisamos da linguagem diurna para a melhor comunicação; da linguagem noturna, igualmente. Feita de sombras, a arte desce ao subterrâneo humano pra desnudar-lhe o porão. Vitor Giudice diz a mesma recusa: "A ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas as mentiras." Bem isso. Quem insiste em colocar luz e transparência em tudo, apenas reproduzirá o já dito, jamais conhecerá a expressiva linguagem das sombras. Insistindo em molhar apenas as canelas nas águas rasas do rio, jamais lhe conhecerá a real profundidade.

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